quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Irracionais Famintos

E por estar ali, parada e só, a saudade de você me acompanhava.
Por estar carregada de nós, de nossas lembranças, e exausta de nossas madrugadas, eu me mantinha no mesmo exato lugar, coadjuvante entre os objetos que foram também seus. Seus livros, suas canecas, nossos bichos e lençóis.
Com a memória travada de dores, passei incontáveis dias. Incontáveis também porque todos haviam se tornado uma coisa só, adormecer ou desperdar, tanto fazia. Tanto fazia se era dia ou noite.
De vez em quando eu me punha de pé para alimentar o cão, o gato e os pombos, dependentes que eram deste meu esforço, e aí era a hora da saudade ser também nutrida, alimentando-se de mim, me sugando, me exaurindo. Você sabe que nunca neguei alimento a nenhum irracional faminto, sendo ele animal, desejo ou sentimento.
Era assim que eu buscava consolo. Eram as coisas que me haviam sido deixadas pelo inventário do seu adeus.
E eu cuidei delas por anos.
Mas o cachorro, já velho, um dia morreu. O gato fugiu (ou foi atropelado numa de suas investidas noturnas, porém prefiro pensar na primeira hipótese), e os pombos desapareceram durante o último inverno. Talvez voltem. Aprendi com você a não esperar.
Só a saudade, hoje velha e sem tanta força para me acompanhar, me visita, de quando em vez.
Não lembro mais do seu rosto. Nunca me forcei a esquecê-lo, mas aconteceu que um dia passei em frente ao espelho, um pouco mais disposta,  e me achei até atraente. Daí passei a ocupar-me tranquila de mim. Na verdade, o que possuo hoje é a saudade de sentir saudade de alguém. E como só tem você, vai você mesmo.
E aí sou eu, meu livros, canecas e lencóis cheirosos. Minhas coisas tão amadas, que jamais me deixarão.
Os animais famintos, sempre que posso, alimento. Mas na rua mesmo. Os desejos também.
E quanto aos sentimentos, copiei uma mania sua. Mato todos de desprezo, de inanição.
"De boa". Sem remorso algum.

5 comentários:

Poesia na alma disse...

SHOW! ADOREI! O FINAL FOI SIMPLESMENTE SURPREENDENTE!

Nathalia Ferro disse...

Obrigada, lindona! Tou te seguindo, viu? Beijos!

Sagaz disse...

Muito bom!!

A. Ferro disse...

Assim como o vinho....

Antonio Neto disse...

Chocante! Provoca dor e tristeza, pra depois sentir prazer. Texto bem sádico e charmoso,combinação deliciosa.